terça-feira, 21 de julho de 2009

ARTIGO/Cultura ibero-americana: Literatura Portuguesa

A intertextualidade em Viagens na Minha Terra, de Almeida Garrett


Jóis Alberto *


Autor de livros que inovaram a literatura portuguesa, como “Viagens na Minha Terra”, Almeida Garrett foi o iniciador do Romantismo literário em Portugal, em 1825, quando ele publicou o poema “Camões”, uma biografia romanceada, em versos brancos, do célebre poeta. Em terras lusitanas, o Romantismo durou aproximadamente 40 anos. Terminou por volta de 1865, com a “Questão Coimbrã” ou “Questão do Bom Senso e do Bom Gosto”, encabeçada por Antero de Quental. A citada questão marcou o advento do Realismo em Portugal, em oposição ao Romantismo, já em declínio. Como em outros países europeus, o Romantismo português está relacionado ao liberalismo e à ideologia burguesa. Questões estéticas, políticas, econômicas, culturais e ideológicas às quais Almeida Garrett estava engajado como escritor e político liberal. Garrett fez parte da primeira geração do Romantismo lusitano, ao lado de outros dois grandes escritores daquele país, Alexandre Herculano e Antônio Feliciano de Castilho.
João Batista da Silva Leitão de Almeida Garrett nasceu no Porto, em 4 de fevereiro de 1799. Devido à invasão de Portugal por tropas de Napoleão, a família de Garrett emigrou para os Açores, onde ele fez os primeiros estudos. Estudou direito em Coimbra (1816) e, empolgado com o liberalismo, chamou a atenção como orador. Em 1823 a contra-revolução absolutista levou-o a se exilar na Inglaterra. Foi nessa época em que ele escreveu o citado poema “Camões”. Voltou ainda a Portugal, para fazer jornalismo, mas foi preso e de novo seguiu para a Inglaterra. Em 1832 retornava como combatente da causa liberal. Trabalhou como correspondente no Havre e, em Bruxelas, como encarregado de negócios.(...). Almeida Garrett morreu em Lisboa em 10 de dezembro de 1854.

Viagens na minha terra

Publicado pela primeira vez em 1846, “Viagens na Minha Terra” (usaremos aqui uma edição brasileira de 1997) é uma obra singular, que mescla memórias pessoais, ficção romântica e digressões críticas sobre a realidade social e a história de Portugal. Almeida Garrett começou a escrevê-la na forma de artigos para a “Revista Universal Lisbonense”, depois de uma viagem de passeio à região de Santarém, em 1843. O livro está dividido em 49 capítulos, todos curtos, o que dá agilidade à narrativa, seduzindo aos poucos o leitor para uma viagem ao longo de todo o texto, dividido em dois planos, em meio a digressões do autor. Essas reflexões, de ordem estética, filosófica e política, nas mãos de um escritor de pouco talento ou aos olhos do leitor pouco atento, poderiam tornar o texto enfadonho. Não é o que acontece, porém, com Almeida Garrett, dono de uma cultura erudita e domínio inovador da técnica literária, não só para a época em que ele viveu, mas sobretudo para as gerações seguintes, com repercussões até à atualidade. Em “Viagens na Minha Terra”, Garrett fez um trabalho de citações, referências ao próprio autor e ao leitor, que na atualidade assemelha-se muito ao trabalho de intertextualidade desenvolvido por escritores pós modernos, como por exemplo Ítalo Calvino em “Se um viajante numa noite de inverno”, ou mesmo em narrativas de José Saramago, para mencionar um escritor português da contemporaneidade.
Nesse sentido, podemos citar a análise que Carlos Felipe MOISÉS (2001) faz acerca de “Viagens na Minha Terra”, livro que, segundo ele, pode ser lido, em princípio, como simples relato de viagem: “Se assim o fizer, o leitor acompanhará as andanças da pequena comitiva garrettiana, primeiro singrando águas do Tejo, depois por terra, Ribatejo adentro, passando por Vila Nova da Rainha, Azambuja, Cartaxo, Asseca, até chegar a Santarém - pequenos e pitorescos povoados, descritos com lentidão e bonomia, demorando-se o escritor em associações muito livres, divagações sem conta. O procedimento é marcado por acentuado gosto enciclopédico, boa dose de eruditismo exibicionista, que o leva, por exemplo, a citar inúmeros autores, de vários idiomas, inclusive o grego, no original”. Esse exibicionismo é uma pose, como assinala MOISÉS (op. cit. pags. 114 e 115), típica do dândi especial, mundano e elegante, vaidoso, requintadamente insubmisso, como era o próprio Almeida Garrett. Mas, Garrett assume essa pose com uma certa auto-ironia, como por exemplo ocorre nos resumos introdutórios colocados no início de cada capítulo, auto-ironia e condescendência que se caracterizam melhor quando ele exagera esse recurso estilístico: “(...) desce o A. destas grandes e sublimes considerações para as realidades materiais da vida (...)”.
Ainda de acordo com Carlos Felipe MOISÉS (idem, p. 117), no primeiro plano “Viagens na Minha Terra” é um despretensioso relato de viagem, ao qual se entrelaça outro relato, o de uma idealizada fantasia amorosa (o amor de Carlos e Joaninha). Já no segundo plano, o livro não passa de pretexto para que o autor possa erguer um largo painel das transformações por que passa Portugal nas primeiras décadas do século 19, por força da ruidosa e tumultuada introdução da Nova Era, liberal e burguesa. Em Santarém, cujo vale e chegada da comitiva são descritos no cap. 10, o narrador fica sabendo da história de Joaninha e de seu primo Carlos, envolvidos em uma paixão que não tem final feliz. A visão de amor acionada por Garrett é de extrema idealização e baseia-se na irrestrita fidelidade que os amantes devem jurar a seus votos. A de Joaninha é mais certa e infalível que a luz do sol: a figura feminina concentra a forma suprema de idealização romântica. Já a fidelidade de Carlos será posta à prova, sucessiva e alternadamente, ora pela vocação Don-juanesca do herói, ora por seus deveres de soldado, fervorosamente empenhado na causa liberal.
Carlos é o herói atormentado pela honesta intenção de conciliar aspirações inconciliáveis: ou bem serve à Joaninha, ou bem serve à Pátria, ou bem serve ao impulso irrefreável das conquistas amorosas. Nesse diapasão, a narrativa da fantasia sentimental se estende até o capítulo 26. Qual terá sido o destino de Carlos e Joaninha e de seu amor ao mesmo tempo incorruptível e impossível? Antes da revelação, o autor nos traz de volta à primeira viagem e informa que a comitiva segue caminho na direção de Santarém. Em meio a digressões e interrupções várias, sugerindo que as duas viagens devem entrelaçar-se, a narrativa retoma, no cap. 32, as desventuras amorosas de Joaninha e Carlos, aparentemente rematadas quatro capítulos depois.
Como sabemos, o Romantismo elevou a figura do poeta a um papel central de profeta e visionário. A apreensão da verdade deveria se dar diretamente a partir da experiência sensorial e emocional do escritor; a imitação dos modelos clássicos foi abandonada. São criações românticas o mito do artista e do amante incompreendidos e rejeitados pela sociedade ou pela amada. É conhecido como Sturm und Drang (tempestade e tensão) o movimento pré romântico que entre 1770 e 1780 propiciou as bases para o desenvolvimento do novo estilo na Alemanha e depois no resto do mundo. Goethe, autor de “Os sofrimentos do jovem Werther” (1774), se destaca numa geração de grandes escritores, na qual figuram Tieck, Novalis, e Hölderlin. (...)
A literatura romântica britânica tem como uma das fontes a novela gótica, na medida em que as reconstruções de ambientes medievais, os cenários históricos e exóticos nessas obras definiram algumas das características do romantismo. Exemplo disso são os romances históricos de Walter Scott, que transcenderam as fronteiras britânicas. Em Portugal, Almeida Garrett também escreveu romance histórico, gênero no qual o grande nome da literatura portuguesa é Alexandre Herculano, autor de “Eurico, o Presbítero”. Quanto à poesia romântica, Wordsworth e Coleridge criaram uma teoria poética baseada no livre fluxo das emoções intensas e na fantasia, que norteou a produção de Keats, Shelley e Lorde Byron. Este último poeta é citado por Garrett logo no primeiro capítulo de “Viagens na minha terra”: “(...) Não me lembro que Lorde Byron celebrasse nunca o prazer de fumar a bordo. É notável esquecimento no poeta mais embarcadiço, mais marujo que ainda houve, e que até cantou o enjôo, a mais prosaica e nauseante das misérias da vida! Pois num dia destes, sentir na face e nos cabelos a brisa refrigerante que passou por cima da água enquanto se aspiram molemente as narcóticas exalações de um bom cigarro de Havana, é uma das poucas coisas sinceramente boas que há neste mundo” (GARRETT, op. cit. p. 39)
Na França, o romantismo teve como um dos precursores o filósofo Jean-Jacques Rousseau, que defendia um modo de vida natural, sem a influência alienante da civilização. Os românticos franceses foram liderados por Victor Hugo, cujo prefácio ao drama Cromwell (1827) é considerado um manifesto literário. (...) Na Rússia, Espanha e Polônia, a literatura romântica também se desenvolveu. Na Itália, Portugal e Estados Unidos, o movimento teve forte caráter nacionalista. (...).

O romantismo na literatura portuguesa

A literatura portuguesa caracteriza-se desde os primórdios pela riqueza e variedade na poesia lírica, pela qualidade literária dos escritos históricos (...). Em Portugal, o crescimento econômico decorrente dos descobrimentos e da intensificação do comércio favoreceu a burguesia e enriqueceu também a vida intelectual, mas não proporcionou livre acesso aos ideais do Renascimento e do Humanismo. Estes ideais, na península ibérica, foram obscurecidos pela Inquisição e pela Companhia de Jesus, dos jesuítas. Apesar dessas forças repressoras, destacaram-se nomes como Sá de Miranda (...); Gil Vicente e Camões, escritores que apostavam no homem e na razão, na liberdade e na arte.
Na evolução da literatura portuguesa não se encontra movimento mais complexo que o Romantismo, que, como já vimos, liga-se às revoluções sociais pelas quais a burguesia se impôs às monarquias européias e dominou o processo político. (...). As duas grandes figuras românticas em Portugal, Almeida Garrett e Alexandre Herculano, foram ambos exilados liberais durante o governo de D. Miguel e voltaram à pátria como soldados do exército libertador. (...). Em todo o período romântico duas tendências se defrontam e se prolongam até o fim do século, já em pleno naturalismo: o lirismo pessoal, confessional, e o de inspiração universalista - seja religiosa, social ou científica. Essa contradição ainda será encontrada em Guerra Junqueiro, embora este pertença cronologicamente à Geração de 70. Da mesma forma, pode-se classificar como romântica a poesia de Antero de Quental. Somente com Cesário Verde (“O livro de Cesário Verde”, póstumo), contemporâneo de ambos, o Romantismo foi ultrapassado.

Bom senso e bom gosto

O espírito contemporâneo nas letras portuguesas teve seu ingresso mediante uma polêmica que resumiu antagonismos ideológicos e literários: a Questão Coimbrã, surgida em 1865. Em nome do status quo, o academicista Antonio Feliciano de Castilho atacou, em carta, a temática de poetas publicados por um editor de Coimbra e, na ocasião, fez referências depreciativas a Teófilo Braga e Antero de Quental. Este último, em carta aberta a Castilho, sob o título “Bom senso e bom gosto”, taxou a poesia de Castilho de imobilista e provinciana e defendeu as idéias e ideais do fim do século, a ciência, o realismo e as conseqüentes mudanças na literatura. Com outro texto, “A dignidade das letras e as literaturas oficiais”, Antero aprofundou a questão e, por sua agressividade, dividiu a opinião dos intelectuais. Camilo Castelo Branco e Ramalho Ortigão intervieram a favor de Castilho, enquanto Eça de Queirós apoiou Antero de Quental.
Na década de 1870, ou seja após a morte de Almeida Garrett e em meio de intensas atividades político-partidárias, Portugal, às voltas com problemas para administrar seus domínios na África, vivia uma grande movimentação intelectual, que se traduzia numa profusão de debates e publicações. Nesse contexto, destaca-se a chamada Geração de 70, uma das mais brilhantes da literatura portuguesa - que reuniu Antero de Quental, Eça de Queirós, Guerra Junqueiro, dentre outros. Essa geração propunha-se discutir as grandes transformações da Europa, em particular na França, na Alemanha e na Inglaterra, e incorporá-las na base de seu trabalho. O romantismo sobrevivia a duras penas, enquanto se debatia Michelet, Renan, Proudhon, Schelling, Hegel, Feuerbach, Darwin... Importavam-se livros em quantidade, traduzia-se; a Igreja tornava-se objeto de críticas... Sucediam-se os romances de Eça de Queirós, os sonetos alegóricos e autobiográficos de Antero de Quental... (...)
À época do romantismo português, e europeu de modo geral, o Brasil ainda mantinha estruturas de latifúndio, escravismo, economia de exportação e uma monarquia conservadora, remanescentes do colonialismo, condições socioculturais muito diferentes das encontradas nos países da vanguarda romântica européia, onde a ascensão da burguesia como classe hegemônica havia se consolidado e a revolução abria as portas de uma nova era. A partir de 1808, a permanência da corte portuguesa no Brasil transformou cultural e economicamente a vida da colônia, com a implantação da imprensa e as primeiras iniciativas para o ensino universitário. O subseqüente processo de independência, em 1822, ativou ainda mais a efervescência intelectual e nacionalista já instalada. Foi nesse contexto, e a partir da década seguinte, que surgiu o romantismo brasileiro, mas isso já é outra história.

REFERÊNCIAS

GARRET, Almeida – Viagens na Minha Terra – edição dirigida e apresentada por Antônio Soares Amora. Rio de Janeiro: Ediouro; São Paulo: Publifolha, 1997.
MOISÉS, Carlos Felipe – O Desconcerto do Mundo, do Renascimento ao Surrealismo. São Paulo: Escrituras Editora, 2001.

*Texto apresentado originalmente como trabalho em grupo, de Seminário da disciplina Literatura Portuguesa II, do curso de Letras da UFRN, em 2007. Do grupo, participaram as colegas de turma Milene Cristina e Ozejane... Para a publicação aqui no blogue fiz algumas mudanças, como o título, e cortei alguns trechos para diminuir o tamanho.

Nenhum comentário:

Postar um comentário