sexta-feira, 17 de julho de 2009

ARTIGO/Reforma psiquiátrica

Por uma psiquiatria mais humana
e atualizada nos hospitais de Natal


Jóis Alberto

É deplorável a atual situação do atendimento de pacientes em tratamento psiquiátrico nos hospitais públicos de Natal, como tem mostrado, com imagens contundentes, reportagens em telejornais da cidade, desde que o Conselho Regional de Medicina do RN (Cremern) interditou enfermarias do Hospital Colônia Dr. João Machado, em Morro Branco. Após essa primeira interdição, noticiada há cerca de um mês, o atendimento aos pacientes foi transferido para o Hospital dos Pescadores, nas Rocas, onde posteriormente o Cremern realizou outra interdição, possibilitando retorno do atendimento ao pronto socorro psiquiátrico do Hospital Colônia desde a noite de quarta-feira (16/07) passada. Nesse período, se anunciou que pacientes em surtos psicóticos de urgência também seriam atendidos e internados em clínicas psiquiátricas particulares, mas foi uma dificuldade grande para uma família internar numa dessas clínicas um rapaz em grave crise psicótica, levado por ambulância do SAMU, conforme mostraram recentemente imagens do flagrante de um dos telejornais. Somente a muito custo o rapaz foi internado.
Será que, após essas interdições e constrangimentos, as providências tomadas pelas secretarias municipal e estadual de saúde vão melhorar a situação dos estabelecimentos de tratamento psiquiátrico em Natal (eu uso aqui o termo “estabelecimento” porque manicômio, instituição arcaica, é uma palavra que, pela reforma, tende a cair em desuso)? Bom, espero que sim, embora eu seja um tanto cético em relação a isso. Minha experiência como repórter de jornais locais mostra que, infelizmente, são muito lentas as melhorias que ocorrem nos setores de Saúde e Educação pública na cidade – neste último setor, como professor estagiário de Português na rede estadual de ensino, tenho visto de perto o drama da Educação no ensino fundamental em Natal. Mas, voltando à questão do atendimento psiquiátrico (em CAPs – Centro de Atenção Psicossocial – e hospitais públicos) da cidade. Como melhorar esse atendimento? Essa é uma questão sempre atual e, no Brasil contemporâneo, a resposta passa necessariamente pelas propostas da Reforma Psiquiátrica e da nova legislação federal específica, mas não se limita a elas, já que o assunto é muito polêmico (necessidade ou não de internação; cronificação da “doença”; efeitos colaterais dos remédios, embora hoje os riscos desses efeitos sejam menores do que antigamente, graças aos avanços das neurociências, etc, etc).
Dentre as terapêuticas para os transtornos mentais, tenho inicialmente uma simpatia maior pela Psicanálise, que, como se sabe, após Sigmund Freud teve várias escolas criadas por discípulos dissidentes, como Alfred Adler, Carl Gustav Jung e Wilhelm Reich, dentre outros. No caso de discípulos com atuação mais recente, Jacques Lacan, por exemplo, este retoma a obra de Freud buscando fundamentações não apenas na biologia (genética, hereditariedade, sinapses, etc), como outros médicos, psiquiatras e psicólogos... Lacan se fundamenta principalmente na lingüística de Ferdinand de Saussure e na antropologia estrutural de Claude Lévi-Strauss. Para Lacan, que é um dos grandes pensadores do estruturalismo, o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Posteriormente, o pensamento lacaniano ampliou as suas referências teóricas com a matemática e a lógica...
Na opinião de psicólogos e psiquiatras ortodoxos – especialmente os que na atualidade são ligados à instigante linha cognitivo-comportamental, de forte inspiração neo-behaviorista e sintonizada com as neurociências – a psicanálise não tem rigor científico, ou melhor, não tem consistência científica. Para quem acha que as teorias e práticas psicanalíticas de Freud estão mais para literatura do que para terapêutica das chamadas doenças mentais, opinião de boa parte dos psicólogos e psiquiatras mais ortodoxos, é bom informar sobre o diálogo crítico que o filósofo alemão Martin Heidegger – considerado por muitos o grande pensador do século 20 – mantém com a psicanálise, como mostram os trabalhos do psiquiatra suíço Medard Boss, no livro Seminários de Zollikon. Binswanger, outro psiquiatra que dialoga com o pensamento existencialista, em especial o pensamento heideggeriano, é mais conhecido por psiquiatras ortodoxos do que M. Boss. Tive um primeiro contato com o trabalho de Boss em 2004, durante um dos seminários do curso de Especialização em Filosofia da Pós Graduação em Filosofia da UFRN, ministrado pelo professor da UFPE Vincenzo Di Matteo. Esse professor mostra como Heidegger critica alguns aspectos da obra de Freud e concorda com outros: “a leitura heideggeriana, fundamentalmente, é a que predominou na tradição fenomenológica até a década de sessenta com seu ‘sim’ ao método psicanalítico e seu ‘não’ à doutrina (teoria)”. Em resumo, de acordo com Vincenzo Di Matteo, as críticas à concepção do sujeito moderno aproximam a ontologia fundamental de Heidegger da metapsicologia de Freud. Segundo Heidegger, no entanto, a análise freudiana do psiquismo mantém-se aprisionada à metafísica ocidental. Ou seja, Di Matteo aponta semelhanças e diferenças entre as análises desses dois autores, questionando também o destino das heranças deixadas por eles. Portanto, ao analisar essas questões, o que pretendo argumentar aqui é de que ainda se pode extrair valiosos ensinamentos do legado da psicanálise, não só nos aspectos clínicos mas também em relação à filosofia e à cultura de modo geral.

O mal-estar na civilização

Nesse sentido, um dos trabalhos de Freud mais estudados sobre essa relação – psicanálise, sociedade e cultura – é O mal-estar na civilização, em que analisa a possibilidade de felicidade, levando em conta o fato de que a sociedade impõe uma drástica redução das satisfações individuais. Além dessa, mais duas importantes obras dele abordam a problemática sociocultural: Totem e Tabu, onde o assunto é a origem da sociedade; Psicologia coletiva e análise do ego, na qual faz a análise dos motivos que determinam a formação e a persistência dos grupos humanos. Autores ligados à Escola de Frankfurt, como Herbert Marcuse têm livros sobre as relações da psicanálise e cultura. Um dos livros em que Marcuse aborda a questão tem por título exatamente Cultura e Psicanálise (2001), reunindo ensaios acerca de temas como a função ideológica da cultura e a dominação dos indivíduos pela tecnociência a serviço do capital.
De autores brasileiros, um livro importante sobre esse assunto é o de Renato Mezan, Freud, pensador da cultura. Mezan é autor também de Sigmund Freud – A conquista do proibido, uma biografia do fundador da psicanálise, um livro pequeno no tamanho, mas valioso como introdução para leigos no assunto. É um dos títulos da excelente coleção Encanto Radical (editora Brasiliense), lançada nos anos 80 e que, após alguns anos esgotada, está sendo relançada em 2009. Nos anos 80, circulava a Rádice, uma das melhores revistas de psicologia já editadas no Brasil, responsável pela divulgação, no País, de renomados autores da antipsiquiatria, como Cooper (também ligado à psicoterapia existencial) e Basaglia... Hoje, infelizmente, pouco se fala da antipsiquiatria nos meios acadêmicos, mas ela deu uma contribuição importantíssima para uma maior humanização do trabalho psiquiátrico, não só com a luta antimanicomial, mas também nas abordagens teóricas. Nesse sentido, é bastante conhecido e igualmente importante o trabalho que a doutora Nise da Silveira, de formação junguiana, desenvolveu no Museu de Imagens do Inconsciente, no Rio de Janeiro, onde estão trabalhos artísticos de pessoas portadoras de esquizofrenia tratadas por ela. Nise, por exemplo, não considerava a esquizofrenia como uma doença, mas como “um estado do Ser”. E, como na visão de Heidegger a linguagem é casa do Ser e que nessa morada habita o homem, vale registrar que, na contemporaneidade, Jurandir Freire Costa é um dos grandes teóricos brasileiros da psicanálise pragmática, que tem como uma das fontes, além do pensamento freudiano, a lingüística pragmática.

2 comentários:

  1. Só agora, meu caro, através do SP, tomei conhecimento de seu blogue. Parabéns pela iniciativa. Passarei por aqui, vez por outra. Uma pergunta/sugestão: por que não publicar o nome do tradutor ao divulgar poetas de outros? Aliás, a sua seleção é muito boa.

    Abraços.

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  2. Olá Moacy, tudo bem?

    Obrigado pelos parabéns! Fico muito honrado com a sua visita e seu comentário aqui ao blogue, especialmente pelo fato de o seu blogue ser um dos melhores que conheço, num trabalho que vem desde a época de fanzines. Anotei a sua sugestão: sempre que tiver o nome do tradutor, citarei a fonte. Eu não fiz isso anteriormente, confesso, porque boa parte dos poemas que estou selecionando é de uma excelente antologia portuguesa. Eu achei que ficaria muito repetitivo citar essa antologia e os tradutores a todo momento. Mas verei como colocar créditos sempre que isso for possível em textos e fotos.
    Abraços

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